Como não era pessoa de levar desaforo para casa, reage ao escracho. O coletivo vota pela sua expulsão. Dias depois, um ato em alguma praça da cidade. O sujeito aparece. As feministas também. Nova confusão, empurrões. A polícia está presente e ri. Por Dokonal
Pensei em escrever um conto realista. Seria sobre um militante de última hora, um sujeito que se torna ativista político durante o Junho de 2013. Ele teria lá seus vinte e poucos anos, um certo voluntarismo próprio da juventude que tomou as ruas do país naquele mês e alguma leitura de esquerda, nada mais. Antes disso, teria participado de coisa nenhuma; talvez, quem sabe, uma eleição de Centro Acadêmico. Seria somente no Junho que esse sujeito teria sua formação militante: nas reuniões de planejamento dos atos, nas assembleias de rua e nos confrontos com polícia e coxinhas coléricos. Meu personagem seria ainda um tipo convencido, mas tosco; meio brucutu. E daquelas pessoas que não levam desaforo para casa.
Faria o sujeito apaixonar-se por uma jovem. Ela, contudo, seria uma militante veterana, já habituada a reuniões enfadonhas, a discussões metodológicas que, para o meu personagem, não fariam sentido algum. Mas ele, apaixonado, frequentaria todas elas; participaria inclusive das comissões, tentando encaixar-se, claro, na comissão na qual ela também participasse.
Durante as manifestações o sujeito se destacaria ao enfrentar as forças repressivas. Seria dos poucos que não recuariam diante de bombas e balas de borracha. E contra os grupos infiltrados da extrema-direita responderia incontinente: distribuiria democraticamente murros e empurrões. Não o faria apreciar as depredações de patrimônio, entretanto. A bem da verdade, deixaria transparecer sutilmente um certo desconforto do personagem com os quebra-quebras.
Com o destaque adquirido nas manifestações, ele rapidamente passaria a chamar a atenção dos militantes mais antigos – e dela inclusive. Decidiriam, ato contínuo, pela sua integração à seleta comissão de segurança. A partir daí, tratamento diferenciado e reuniões exclusivas de planejamento. Numa festa de arrecadação de dinheiro para alguma fiança, os dois transariam. Mais um dos casais de Junho.
Depois seguiria o fim do Junho e o refluxo daquilo tudo. Os grupos políticos se reorganizando, os chamados para a criação de novos coletivos e a renovação dos já existentes. Nosso personagem entraria para o coletivo da ativista veterana, agora já sua namorada. Nessa parte do conto eu daria especial atenção aos grupos feministas que ganharam corpo no período e passaram a atuar dentro de outros coletivos. Falaria dos dois feminismos: o que inclui e o que exclui. E a namorada do sujeito eu faria pertencer a um grupo feminista excludente.
A partir daí eu focaria a narrativa no coletivo do casal e começaria a explorar as tensões entre a namorada/grupo feminista, os demais membros do coletivo e o namorado, este cada vez mais entediado com o cotidiano da organização. O tédio viria da ressaca pós-Junho, do arrefecimento das manifestações, das reuniões extensas e improdutivas. Além disso, a soberba do sujeito contribuiria para que as relações com o restante do coletivo se deteriorassem.
Restaria somente a namorada, ela que já estaria bastante envolvida com a militância no grupo feminista. A atividade do grupo, por sinal, aumentaria consideravelmente no pós-Junho, chegando ao ponto de a maior parte das atividades do coletivo ser organizada pelo grupo. Para mais, as feministas passariam a ver com maus olhos o comportamento do namorado, sujeito grosseiro e pouco afeito a aceitar nas decisões do coletivo as proposições elaboradas por elas. Início de um afastamento do casal.
Aqui eu faria um corte e apresentaria os dois já separados. Depois mostraria a tentativa do sujeito de se engajar novamente na atividade militante, mas um boicote velado de todos à sua participação poria por terra a empreitada. Isolado, ele tentaria um retorno à namorada, mas sem sucesso. Já bem transtornado, insistiria ao ponto de cruzar a linha do bom senso. Aqui estou em dúvida. Talvez o fizesse agredi-la, espancá-la mesmo. Talvez apenas o fizesse humilhar-se num desespero transformado em choro. Não importa. Essa seria uma questão secundária neste conto. O importante é que a reação seria invariavelmente a mesma. As colegas feministas apareceriam. Escracho.
Como não era pessoa de levar desaforo para casa, reage ao escracho. O coletivo vota pela sua expulsão. Divulgação massiva nas redes sociais, agressor machista. Dias depois, um ato em alguma praça da cidade. O sujeito aparece. As feministas também. Nova confusão, empurrões. A polícia está presente e ri.
Insatisfeitas, as feministas perseguem o sujeito. Escrachos semanais no trabalho, nos espaços públicos e até na casa onde mora com a mãe. O chefe começa a ficar preocupado com a imagem da empresa. Nosso personagem passa a evitar a rua. Os amigos de militância sumiram. A mãe adoece. No fim do mês vem o aviso prévio.
Outro corte. O personagem estaria há tempo desempregado, cuidando da mãe. Numa tensão constante entre ressentimento/desejo de vingança e impotência/isolamento. O sujeito ressentido vivendo um exílio na própria casa. Imaginei uma cena no banheiro: ele, em delírio, olhando desesperado o espelho, desejando arrancar a própria face.
Último ato. Deus ex machina. Na TV ligada ouviria o apresentador anunciar prisões preventivas de militantes. Um sorriso aterrador. Iria ao quarto procurar um caderno de anotações já antigas, daqueles encontros de Junho, quando com afinco anotava todos os detalhes das reuniões de segurança. Com o caderno debaixo do braço, caminharia até a delegacia sem tirar o sorriso do rosto.
*
Tudo isso eu pensei escrever. E se não escrevi é porque seria um conto inverossímil. Não é possível, por exemplo, que o desentendimento de um casal acabe por desmantelar uma organização política. Uma coisa dessas só ocorreria se as esferas pessoal e política estivessem a tal ponto sobrepostas que já não mais se pudessem dissociar. Mas não só. Também o coletivo de militantes teria de ser bisonhamente organizado; uma hipotética organização lúdica, em que as pessoas fossem ingênuas, irresponsáveis e brincassem de militância. Sei que toda literatura é ficção, mas queria escrever um conto realista. Se não quisesse, alteraria parte da estória. Escreveria também sobre um triângulo amoroso de militantes, uma intriga surreal com traições, um agente infiltrado disfarçado de midialivrista; e tudo redundaria novamente na delação de todo o coletivo à polícia. Mas seria um tipo de ficção que beiraria o folhetinesco.
As duas primeiras ilustrações são de Francis Bacon e a última de Adrian Ghenie.
Os leitores encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas,
tanto de Portugal como do Brasil.
O argumento é muito bom.
Desde Kafka – pelo menos… – a (in)verossimilhança é uma questão menor, quase negligenciável.
Então, por que não?
Ulisses, o inevitável Ulisses, tem se esmerado em produzir comentários que nada dizem e, aparentemente, muito sugerem (ou, pelo menos, ele assim deve pensar). Uma aura de “esprit”, um certo charme “cult”, seguramente regado a autoengano. Nada que destoe de nossos tempos tão cheios de nada, enfim.
Porém, escrevi mesmo foi para contar dois “causos” – não ficções muito verossímeis, mas sim casos reais. De um, fui testemunha; do outro, participante direto. O primeiro tem relação direta com este texto (interessante e estimulante texto, que atende aos reclamos de uma leitora que postou comentário ao dossiê sobre feminismo lamentando a ausência de discussões, no Passa Palavra, sobre a problemática interface militância/relações amorosas).
O primeiro: há alguns anos, acompanhei de perto o sofrido processo de afastamento da militância de uma jovem e brilhante ativista de uma organização do movimento dos sem-teto. Ela, que tinha origem humilde e era muito inteligente e sensível, havia se envolvido e namorado um militante um pouco mais velho, com origem na classe média. Autoritário, o rapaz morria de ciúmes (de vários tipos, aliás), e acabou tornando a vida da namorada insuportável. Não aguentando mais, ela rompeu com o namorado. Pra quê? Iniciou-se um verdadeiro assédio – implicâncias, perseguições, hostilidade. Para não prejudicar “o movimento”, ela se afastou da organização. O rapaz ficou e “fez carreira”. Hoje é uma figurinha bastante conhecida. Quanto à moça, acabou por sumir do mapa. Com isso, o movimento (me refiro ao movimento, mesmo, e não somente àquela organização) acabou perdendo uma pessoa de grande valor. Não tive mais notícias dela.
O segundo “causo”, sem relação tão direta com este texto (mas suficientemente forte, como lhes parecerá, decerto, óbvio): estava eu, certa vez, há muitos anos, em uma cidade da Alemanha. Ainda não conhecia bem a cidade, e em dado momento parei diante de uma livraria cuja vitrine me pareceu simpática. Eu já falava alemão, mas certos códigos me escapavam por completo. E vejam só no que deu: gostei tanto de alguns livros da vitrine (de Simone de Beauvoir a Vandana Shiva) que resolvi entrar e folhear alguns deles. Não havia ninguém na pequena livraria, só um grupo de umas quatro mulheres sentadas na parte dos fundos. Entrei, cumprimentei-as de longe e pus-me a folhear os livros. Em determinada altura, percebi que estavam, as quatro, me encarando com visível hostilidade no olhar. Não acreditei que pudesse ser realmente comigo, e permaneci onde estava. Como não me “toquei”, uma delas se levantou e veio falar comigo. Explicou-me, seca mas polidamente, que eu teria de retirar-me pois aquela era uma livraria apenas para mulheres. Menos por razões linguísticas que culturais, achei que não tinha entendido direito, e disse que acreditava não ter compreendido bem. Irritada – apesar do fato de eu ser estrangeiro e novato ali ser evidente -, ela disse que sim, eu estava entendendo bem: eu não poderia ficar ali, teria de retirar-me, pois ali não eram permitidos homens. (Ela só faltou me xingar; felizmente não o fez e, quem conhece bem os alemães, sabe que eles quase não falam palavrões, diferentemente de bárbaros incivilizados como nós e tantos outros.) Finalmente entendi o recado. Coloquei o livro de volta à estante (já estava penando em comprá-lo) e, sem dizer palavra – qual?… -, fui saindo de fininho. Antes de ir-me por completo, olhei por fora a livraria, para ver se eu tinha deixado de ver alguma plaquinha dizendo algo como “proibida a entrada de homens” ou algo do gênero. Nada havia. Definitivamente, relações de gênero, ali, eram só para iniciados.
Na minha leitura a conclusão que chegaria do conto é justamente que não dá para separar o pessoal do político. Fazer de conta que as coisas não se misturam só leva a estar despreparado quando o político do pessoal explode na cara da organização.
É também pelas conseqüências que o pessoal tem no político que ele não deve ser deixado de lado. Ora, até num processo de trabalho os bons gestores levam em consideração a vida pessoal do trabalhadores para melhorar a produtividade. Esses mundos não são separados.
Na história do conto, o grande problema é que se opera uma separação entre uma atuação feminista e uma atuação de classe. A forma que se expressa a ação feminista se reporta a de pequenos coletivos de cunho liberal que possui no feminismo pauta única, e não o de organizações políticas ou movimentos sociais com uma pauta de transformação social mais ampla e classista. É em parte dessa inadequação que derivam os resultados nocivos, no caso, o desmantelamento da organização pelas forças repressivas.
Só para reforçar que os comentários de Ulisses me soam prepotente. Como sou um frequentador desse espaço e Ulisses também, achei que colocando isso ele teria algum retorno e poderia refletir sobre como se coloca.
Caro Ulisses,
Sou velho, de uma época em que ser militante, ou simplesmente ser de esquerda, implicava ser vigoroso ou vigorosa. De uma época em que não existia politicamente incorrecto. De uma época em que a arrogância era uma qualidade e não um defeito.
Por todos os seus comentários com que concordei, e sobretudo por todos aqueles de que discordei, obrigado Ulisses! Espero que continue a contribuir para que o Passa Palavra destoe da triste mediania.
Concordo com o último comentário de João Bernardo. Ulisses, estamos contigo.
Quanto ao texto, ele ajuda a ampliar a compreensão de certas situações relativamente comuns, e a ter uma noção melhor da dificuldade delas. São boas questões.
Muito bom!
Eu tinha pensando em coisas assim nos últimos tempos…
Iria escrever algo que apontasse para objetivo final da utopia femista: um mundo femocrático em que os cromossomos y estão em extinção e os últimos meninos serão caçados num cenário pós-apocalíptico.
http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/revista-ch-2008/246/o-fim-do-macho
Comentei com alguém que não gosto de me envolver em discussões de crítica ao feminismo porque, enquanto mulher, eu “apanho” junto, pois deveria defendê-las, por sororidade e seilá mais o quê. Que já fui chamada de “sequestrada pelos homens”, por isso. E que eu conheço muita feminista que também se omite pra não ser isolada pelas companheiras mais extremistas. Estas baixam a cabeça e veem questões como “lesbianismo político” como algo compreensível, porque geralmente as moças mais extremizadas politicamente sofreram algum tipo de agressão (física ou emocional), e que a visão de homem-inimigo é, de novo, compreensível , devido a essas experiências traumáticas, etc. Ou seja, extremismos de alguns movimentos feministas que não só veem o sexo oposto como inimigo, como as companheiras do próprio sexo que as criticam. São isoladas, são chamadas de “sequestradas”, são tidas como ingênuas vítimas cegadas pelo machismo.
Aí esse alguém me disse que esse deveria ser o próprio comentário, e que é covarde aceitar chantagem ideológica.
Então também lembrei do episódio de um primo meu, diagnosticado com esquizofrenia e tourette. Ele sempre foi um menino muito carente por atenção, porque (muito provável por causa de sua doença) nunca conseguiu obter o status e a atenção que seu irmão mais velho, médico, estudioso, auto-suficiente, empreendedor, sempre teve. Este foi o episódio: Numa festa este rapaz bebeu, se exaltou e empurrou a noiva, porque imaginou tê-la visto dando em cima de outro homem. E foi bem isso que aconteceu, ele imaginou. O fato não aconteceu.
Fiquei imaginando o que teria acontecido se um coletivo feminista desses moldes tivesse presenciado a atitude do meu primo, de empurrar a noiva, motivado por uma paranoia.
Fiquei imaginando esse meu primo, que tem um histórico psiquiátrico, sendo escrachado. Fiquei imaginando as consequências disso. Suicídio foi a primeira coisa que me passou pela cabeça.
Não estou tentando aqui patologizar o machismo, de jeito nenhum. Dessa vez, minha crítica é ao escracho.
Eu não consigo não relacionar o escracho aos justiceiros que amarraram “bandido” em poste numa onda que rolou por todo o Brasil.
Eu não consigo desconectar o escracho do próprio sistema penal do Estado brasileiro, e da ideologia que reforça esse sistema, ambos focados na punição, na agressão, na violência; em vez de se pautar na reabilitação, na reeducação.
E eu não consigo não visualizar o episódio bíblico de apedrejamento de adúlteras, quando ouço a palavra escracho.
Boa questão, Heloísa
Essa questão da punição me ocupei (filosoficamente) há algum tempo atrás, após ver que a maioria das conversas com pessoas na rua, ônibus, geralmente descambavam para para a punição como a “única relação socia válida”. Pesquisei, reuni alguns argumentos e concluí fazendo o texto a seguir:
http://humanaesfera.blogspot.com.br/2014/05/contra-as-recompensas-e-punicoes-isto-e.html
As notas para um conto a escrever são tão realistas que a seguinte entrevista poderia figurar como tendo sido feita pelo protagonista (ou não…):
http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2014-07-24/ex-lider-da-fip-e-a-principal-testemunha-em-inquerito-contra-ativistas.html
Acho curioso o estilo aforístico-sintético do Ulisses incomodar tanto. Não tão surpreendente é o autoritarismo daqueles que se pensam “intelliggencia” (de direita e esquerda, igualmente) e se julgam no direito de definir a forma (se não o conteúdo…) das intervenções e contribuições de alguém. Afinal, Balzac era literatura, Leminski não. Leminski no máximo “sugeria” literatura. tsc tsc tsc
Muito boas as últimas linhas do comentário de Heloísa. Autoritarismo, esse câncer da luta política.
Percebo que muita gente está tomando a narrativa do inquérito como verdade. O que temos de objetivo até o momento não são as traições, ressentimentos e vinganças, mas a constatação da existência de um amplo aparato de controle e repressão, estruturado pelo poder executivo e a polícia e respaldado pelo judiciário, aparato que grampeou dezenas (centenas?) de ativistas, advogados, sindicalistas, parlamentares; que acumulou centenas de horas de escutas telefônica; que obteve informações sigilosas de mensagens eletrônicas e dados bancários. Um aparato que, valendo-se de peças dispersas de um quebra-cabeça que provavelmente não feche, contou com seus órgãos de relações públicas, a grande mídia, para compor essa narrativa digna de série televisiva, a qual foi capaz de lançar uma sentença pública antes mesmo do juízo oficial.
Caro Tomazine,
A questão não é se a narrativa do inquérito é ou não verdadeira. Foi por isso mesmo que inventei uma outra narrativa, aqui ou ali parecida com a daquele inquérito, mas relativamente maleável para adequar-se a outras narrativas possíveis. Foi um exercício de imaginação.
Exercícios de imaginação são eficazes porque nos permitem antever as possibilidades de resolução de uma determinada situação considerando as estruturas que presidem aquela dada realidade.
Pois bem, você menciona a existência de um amplo aparato de controle e repressão. Essa é uma estrutura já posta e que, de acordo com a notícia veiculada ontem, “Exército remodela centro de inteligência para monitorar movimentos sociais” (http://colunaesplanada.blogosfera.uol.com.br/2014/07/29/exercito-remodela-centro-de-inteligencia-para-monitorar-movimentos-sociais/), só tende a aperfeiçoar-se.
A outra estrutura são os movimentos sociais e os coletivos de militantes e a forma como eles se organizam. Essa é invariavelmente a questão.
Tanto a narrativa do inquérito quanto a minha narrativa inventada só são verdadeiras porque o tecido de onde elas são criadas lhes permite essa possibilidade de existência.
E elas tragicamente continuarão a ser verdadeiras enquanto não mudarmos a forma como vamos nos organizar daqui para frente.
Caro Dokonal, não me referia ao seu texto quando disse que muita gente estava levando a narrativa do inquérito ao pé da letra. Eu penso ter compreendido a sua intenção com o texto e também acho que a verdadeira questão a se refletir daqui para frente é, justamente, a maneira de se organizar. Não obstante isso, afirmo que muitas pessoas (e vejo isso por conversas e comentários pela Internet), inclusive de esquerda, tomaram a narrativa do inquérito como necessariamente verdadeira, e, consequentemente, creem numa suposta estupidez dos ativistas indiciados, comprando, assim, o julgamento que a DRCI e a grande mídia vendem: além de “terroristas”, eram jovens estúpidos.
Para além da maneira como os movimentos devem se organizar daqui para a frente — o que passa por maior cuidado quanto à comunicação interna e aceitação de integrantes –, o que está posto é que o tal aparato de repressão e controle está, aparentemente, apto a neutralizar certas formas de ação, sobretudo a ação direta, e não me refiro apenas a confrontos com a polícia, depredação de bancos e coisas do tipo, mas também ocupações de imóveis vazios, catracaços, bloqueios de avenidas movimentadas etc. Em um texto que o Passa Palavra publicou há algum tempo, discorreu-se sobre como o Estado da Alemanha Ocidental neutralizou a RAF. Pois o risco que os movimentos não alinhados ao jogo institucional hoje correm é serem neutralizados sem precisarem de tanto, ou virem-se isolados e terem sua comunicação interna diminuída a tal ponto que sejam levados à inoperância. Afinal, até mesmo o conteúdo deste site pode ser objeto de investigação, e depois para que se “prove” que “material” é um código para gasolina e “inserir texto” quer dizer “lançar coquetéis molotov”, é um passo.
o comentário da Heloísa é muito feliz, pois coloca em evidência que a natureza do amor é a própria loucura. Estas duas coisas não podem ser facilmente dissociadas, e a postura dos movimentos sociais frente a ambas não pode ser muito distinta.
Pois é…
http://rebaixada.com.br/pesquisa-de-mestrado-no-inquerito-da-policia/
Achei o texto bastante interessante, aliás o passa palavra é ótimo, ainda não havia comentado textos mas os acompanho e aproveito a ocasião para parabenizar os colaboradores.Quanto ao texto, é excelente para pensarmos sobre certas práticas, total acordo com o comentário da Heloísa, me sinto como ela e já passei por situações muito semelhantes a que ela descreve. Concordo com a ponderação do Tomazine de que algumas pessoas, inclusive militantes, estão reproduzido um discurso construído pela mídia e pelo Estado a cerca desse processo. Entretanto, o que está sendo levado a cabo pelo Estado e pela mídia, tanto no campo material como simbólico é exatamente o que um militante espera dessas instituições, não há surpresas. Aí concordo com o comentário do Dokonal o que nos cabe é repensar, a partir dessa ofensiva, nossas organizações, nossas práticas, e aprender a partir disso, se só nos focarmos no Estado ou nos delatores q colaram no movimento há alguns meses, estaremos perdendo uma grande oportunidade de, através do exercício de crítica e autocrítica, melhorarmos nossa organização. Abraços fraternos.
JOVEM HEGEL (NO) PASSA PALAVRA:
“Verdadeira união, genuíno amor, somente se dá entre vivos que são iguais em poder, e, portanto, são de todo vivos um para o outro, de nenhum lado mortos um para o outro; o amor exclui toda contraposição, ele não é entendimento, cujas relações deixam o múltiplo sempre ainda um múltiplo e cuja unidade ela mesma são contraposições; ele não é razão, a qual simplesmente contrapõe seu determinar ao determinado; ele não é algo limitante, nem algo limitado, não é algo finito; ele é um sentimento, mas não um sentimento singular…” [O amor, a corporeidade e a propriedade]
As vezes a vida ultrapassa em muito a literatura, algumas coisas colocadas por escrito parecem tão inverossímeis que geram uma reação de incredulidade, como algo por demais caricato. Peguemos por exemplo a narrativa acerca do policial infiltrado no Rio de Janeiro (http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/07/1492591-depoimento-de-pm-infiltrado-detalhou-atos-violentos-no-rio.shtml). Se alguém fizesse uma ficção na qual foi criado um chat, supostamente seguro, que tenha entre os membros um agente da inteligência do Estado, certamente se acusaria o autor de caricaturar a realidade. O problema é que por vezes a esquerda é uma caricatura de si.
Ajudaria de fato se essa esquerda fizesse mais discussões e reflexões sobre suas próprias práticas, por vezes distantes do cotidiano da população.
Caro Legume,
A esquerda é uma caricatura de si própria porque fecha um olho ao presente e do passado tem uma memória selectiva. Por que será — um exemplo entre muitos — que se fala tanto de Lenin e tão pouco de Roman Malinovsky?
Completando o meu comentário anterior.
É curioso que uma parte dos comentadores tenha passado ao lado do assunto. Este artigo trata de feminismo, escrachos e informadores da polícia. Trata disto e não de outras coisas.
Ora, o tipo de feminismo que hoje se tornou hegemónico — a que o Passa Palavra chama feminismo excludente — caracteriza-se por biologizar uma questão cultural. Converte os sexos em raças e instaura um equivalente ao racismo, não menos fanático nem menos estúpido do que o racismo propriamente dito.
E não menos cruel e cobarde, como o demonstra a utilização dos escrachos. Para chamar às coisas pelos seus nomes, um escracho é simplesmente uma linchagem moral. Participar num escracho ou apoiar um escracho é participar numa linchagem e apoiá-la. O escracho é uma tortura colectiva e, independentemente de saber se a vítima é ou não uma pessoa desprezível, os torcionários, tanto físicos como morais, esses sim, são pessoas desprezíveis.
É inevitável que este ambiente, em que ao permanente racismo do feminismo excludente se acrescenta a linchagem moral dos escrachos, coloque numerosos problemas aos movimentos sociais e políticos, agravando tensões já existentes e introduzindo discórdias suplementares.
A polícia aproveita-se de várias maneiras das contradições suscitadas pelo feminismo excludente. 1) Antes de mais, fica facilitada a prestação voluntária de informações, como no caso descrito neste esboço de conto. 2) Mais subtilmente, a polícia aproveita o aparecimento destes informadores voluntários, que facilmente se tornam públicos, para colocar os seus próprios informadores em níveis dissimulados, protegendo-os com as indiscrições cometidas pelos outros. 3) Esta penetração fica agravada quando a polícia usa mulheres como informadoras, porque pelo próprio facto de serem mulheres beneficiam automaticamente do apoio das feministas excludentes, que protegem assim as informadoras de quaisquer possíveis suspeitas.
João, não creio que seja curioso a escolha do tema dos comentadores. O tema que você aborda deu muito o que falar já nesse site, não estou certo de que haja havido tempo para que as pessoas tenham iniciativa de voltar ao assunto num comentário breve.
Mas vou tomar minha parte, pois recentemente num destes blogs “progressistas” brasileiros uma militante que foi perseguida por um professor universitário reacionário deu uma entrevista na qual repetia que “todos os homens são machistas, mesmo os que defendem o feminismo”, atestando o sexismo político desta corrente excludente do feminismo.
E eu fiquei pensando, poxa, se até as mulheres que são as principais vítimas conseguem superar a educação social machista, abandonar a posição degradante de objeto ou de cidadã de segunda classe, tomando para si a dignidade da luta e do protagonismo política… por que é que os homens não podem superar esse encilhamento social e ideológico também?
Ou o cromossomo Y os torna incapazes de realizar esta superação, o que incorre em um sexismo dos mais biologizantes; ou então o interesse dos homens nunca será o mesmo do das mulheres, o que torna mais compreensível a ideia de escolas, vagões e organizações políticas separadas para homens e para mulheres.
“… os bolcheviques foram muito infiltrados, e isto por diversas vezes: Roman Malinovski, operário e agente da Okrana, fazia parte do Comitê Central bolchevique, beneficiando da mais cega confiança por parte de Lénine e enviando para a Sibéria centenas de militantes e de dirigentes e, perante uma suspeita que lhe foi transmitida por Bukarine, Lénine respondeu que isso era «indigno de um militante consciente: se persistires, tu é que serás denunciado como traidor», segundo relatou a mulher de Lénine,
Nadiejda Krupskaja. Mas Malinovski não foi um caso isolado: investigando em 1917 os arquivos secretos da Okrana, Lênine ficou não sem razão estupefato por descobrir que, dos cinquenta e cinco provocadores profissionais oficialmente em funções, e regularmente pagos, dezessete «trabalhavam» no seio dos socialistas-revolucionários, e uma boa vintena dividia
entre si o controle dos bolcheviques e dos mencheviques, e de certo não ao nível dos militantes de base!
E Lénine teve a amarga surpresa de dever constatar que os provocadores eram sempre precisamente os próprios «camaradas» a quem ele, tão prudente e tão perito em matéria de clandestinidade, outorgava a maior confiança e a maior estima, em virtude dos serviços por eles prestados e da audácia demonstrada em várias ocasiões.”
Gianfranco Sanguinetti – Do Terrorismo e do Estado
Ulisses,
Se passarmos a um nível mais profundo, não dos meros informadores mas dos actores da política, encontramos o nome de Parvus (Alexander Helphand), de quem Trotsky esteve muito próximo no seu melhor período político, antes de 1917. Durante a primeira guerra mundial e, portanto, durante o começo da revolução russa, Parvus foi um agente crucial na articulação entre o estado-maior alemão e o movimento revolucionário russo, e apesar de Lenin ter rompido com ele, essa articulação não deixou de se efectuar e de ter consequências muito importantes, das quais o vagão selado não é uma das menores. Quando vejo as relações estabelecidas depois, durante as restrições do Tratado de Versailles, entre a Reichswher e o Estado soviético, não posso deixar de me lembrar de Parvus. Na mesma perspectiva haveria também que lembrar Radek. Não se trata de teorias da conspiração. Trata-se de acções normais de Estados e organizações burocráticas, embora conduzidas com a necessária discrição.
Hoje, no Brasil do PT, a actuação equivalente cabe a Gilberto Carvalho, e muito se enganam aquelas figuras ou figurões dos movimentos sociais que vão a Brasília julgando que conseguirão prosseguir aí a sua própria política, porque é a política do governo que irão servir. Para empregar uma expressão portuguesa de que muito gosto, Gilberto Carvalho come-lhes as papas na cabeça.
Mas, para não ser injusto com um dos lados, convém recordar, do outro, Savinkov. Sem esquecer que Bakunin, quando estava preso na fortaleza Pedro e Paulo, escreveu ao czar propondo-lhe um espantoso programa político. Foi Victor Serge quem descobriu e publicou esse documento, quando o Partido Bolchevista o encarregou de analisar os arquivos da Okhrana, e ele conta que os anarquistas muito o censuraram por ter revelado esses ziguezagues de um dos santos da Igreja.
É que a questão é mais complexa. Não se trata só de informadores e infiltrados, que, tudo somado, são personagens menores e meros agentes. Trata-se também de militantes e dirigentes que julgam que conseguem prosseguir e conduzir uma luta não só no seu campo mas também no do inimigo, e que afinal são utilizados, virados do avesso e deitados ao lixo. Quando leio textos acusando o governo do PT de ser uma ditadura e afirmando que o Brasil não ultrapassou o período do regime militar, penso: quanta ilusão! O grande perigo não é que o governo do PT seja uma ditadura, é que ele é uma democracia, que sabe empregar todas as armas da democracia capitalista. E é neste contexto que o feminismo excludente e os escrachos têm lugar. Um lugar pequeno mas, apesar de tudo, um lugar.
A história teria muito para ensinar se as pessoas quisessem aprender, mas há quem prefira ficar tranquilamente feliz e ser, afinal, le cocu de l’histoire.
das várias coisas que me causam espanto aqui, a maior delas é como a discussão do machismo deflagrador de todo esse enredo policial-dantesco ter passado ao largo de vossas considerações.
então, da moralidade dos atos ao linchamento até o sectarismo da esquerda, seguimos desconsiderando uma luta extremamente necessária, e os problemas advindos dessa negação sistemática…
Caro João Bernardo:
Discordo de uma assertiva, aliás menor e que em nada reduz a validade de tua argumentação: “…muito se enganam aquelas figuras ou figurões dos movimentos sociais que vão a Brasília julgando que conseguirão prosseguir aí a sua própria política…”
Não se enganam, mas fingem que.
Mutatis mutandis, é como diz a letra do samba: “Nosso amor é tão bonito: / ela finge que me ama e eu finjo que acredito.”
Isto posto, haja ‘cocu’!!!
Carxs,
Seguindo a linha de João Bernado – a história teria muito para ensinar.
Se no passado houve discussões como a necessidade de criações de lavanderias públicas, alimentação em restaurantes coletivos, criação das crianças como responsabilidade pública. Isso para que as mulheres tivessem sua autonomia, e esta discussão não estivesse apenas como “redistribuição da tarefa no âmbito domestico”, mas como resolução coletiva de sociedade.
Isso torna clara a expressão – o pessoal é político. (pelo menos para mim).
Numa linha mais libertária encontramos relatos como o de Sara Berenguer Secretária do Comitê Revolucionário da CNT- FAI e de Propaganda do Comitê Mujeres Libres: “A liberdade da mulher é condição da liberdade do homem, e vice-versa; essa é a liberdade como nós libertários e libertárias entendemos. Ela não visa substituir homens por mulheres na hierarquia da exploração, mas sim suprimir a exploração do humano pelo humano, seja macho ou fêmea. É permanecendo juntos, não em oposição uns aos outros, que lograremos êxito. É nisso que nós nos distinguiremos daqueles que reivindicam o feminismo e que não questionam os fundamentos dessa sociedade”.
Enfim…
Tenho me ausentado muito das discussões (nesses meios) sobre feminismo, isso porque me custa caro o assunto, mas lendo o comentário de (S.), penso que talvez haja não uma desconsideração desta luta – extremamente – importante, mas a critica necessária.
Pois o que temos de alguns setores: escrachos, políticas focalizadas nas mulheres propugnadas pela ONU e Banco Mundial. Extensos discursos sobre o machismo que Dilma sofreu com as vaias…
A disputa se faz presente para os setores feministas classistas. E todos aqueles que estão ao lado.